De Lisboa a Paris a pé, Binelde Hyrcan semeia Angola por onde passa

Ricardo VITA
6 min readOct 23, 2020

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Tinha previsto falar sobre algo totalmente diferente, mas mudei tudo quando Binelde Hyrcan me disse que já estava perto de Tours. Portanto, não vamos falar sobre o Bakongo bashing em curso, coisa que alguns no nosso país sabem fazer com habilidade. Voltarei a isso. Mas vamos falar um pouco sobre a TPA que acaba de celebrar 45 anos. Sim, falemos da nossa televisão nacional que nos ofereceu uma grande retrospectiva a semana passada mas que esqueceu todos aqueles que se habituaram a dar a informação na sua língua materna através do mesmo canal. Pois, a semana de celebração que permitiu formar inéditas duplas deu-nos realmente a impressão de que os nossos 45 anos de TPA foram vividos apenas na língua portuguesa. Parece que a informação nunca foi dada em nenhuma das nossas línguas nacionais, que elas nunca existiram ou pior, que não contam. Mas eu pensava que o slogan “TPA Somos Todos Nós” fazia sentido! No entanto, o canal público contentou-se em lembrar com orgulho os ex-pivôs da casa, aqueles que oficiaram na língua colonial, obviamente! Que pena, porque havia aí uma oportunidade para homenagear as nossas línguas, criando, por exemplo, duplas entre um pivô estrela como Ernesto Bartolomeu e um dos ex-pivôs das línguas nacionais para juntos apresentarem um telejornal em português. Mas não. Que oportunidade de comunhão perdida! E era uma ocasião de enviar uma bela mensagem para os nossos compatriotas lusotropicalistas que defendem as nossas línguas sem convicção. Mas não. Preferiu-se reforçar os imaginários que marginalizam as nossas línguas e dar lugar à exibição habitual da competição de timbres e entonações lusitanos com os quais temos dificuldade em distinguir a informação da emoção. Devo admitir, porém, que fiquei comovido com a leitura hesitante e humana de Pedro de Almeida, hoje médico, que soube tocar-nos com a sua benevolência e falta de ego. Também fui sensível à seriedade de Inês Cardoso, uma senhora impecável, que eu também não conhecia. Em todo caso, parabéns à TPA, desejamos que ela nos atenda melhor e tenha mais liberdade!

Se fiquei insatisfeito, não foi apenas por causa do desprezo que foi dado aos ex-pivôs de línguas nacionais. Também estou, especialmente nestes tempos de incerteza e mesmo que as duplas que acabei de mencionar nos tenham dado felicidade e a oportunidade de pensar em outra coisa, porque acho francamente incompreensível que a TPA não cubra a iniciativa excepcional de um angolano que decidiu caminhar de Lisboa até Paris, à pé. Um angolano que decidiu andar quase 2000 km passando pelo literal e por São Tiago de Compostela! É ainda mais surpreendente porque a bela história de Binelde Hyrcan, um conhecido artista plástico que já faz o nosso país brilhar na cena mundial, é uma matéria digna de telejornal! Quem conhece um africano que se deu tal desafio? Existe um angolano que realizou tal proeza ? Não que eu saiba. Portanto, negligenciar o desafio que Binelde se propôs é perder uma história humana extraordinária. Pois um angolano que planta um pedaço de Angola por onde passa é um embaixador maravilhoso que dá honras ao nosso país. Este angolano que decidiu contar a quem encontrar no seu caminho que Angola não é só a miserável guerra civil que se gruda na sua pele ou a corrupção endémica que sofre ou ainda a miséria galopante e preocupante é uma pessoa que a media de qualquer país sério teria seguido com admiração e patriotismo! Binelde deu-se este desafio humano, de ir ao encontro das pessoas e da natureza, saindo de Lisboa no dia 20 de julho e caminhando 40 ou 50Km por dia, após o confinamento ter causado o cancelamento das suas exposições, depois de ter perdido amigos que foram engolidos pela Covid-19 e depois de ficar preso em Lisboa quando as fronteiras fecharam. Resolveu então caminhar, para ir encontrar-se com este mundo estranho que nos condena ao retraimento e a temer viver a vida, enobrecendo por toda a parte o nome manchado e desonrado da sua pátria mal conhecida. O ser humano é a principal matéria que nutre a obra artística de Binelde, ir ao seu encontro para o abraçar e reavivar o amor por onde passa é a sua forma de viver e de partilhar a vida. Neste preciso momento ele está a andar e tem vivido a beleza intensa das paisagens que esquecemos, tem saboreado alegrias simples como tomar banho num rio, comer as frutas frescas que encontra nas florestas, agradecer à Mãe Natureza por contemplação e partilhar uma bebida quente com um novo amigo. Decidiu fugir da velocidade e do imediatismo da nossa vida moderna que nos alienam, e decidiu fazer da sua solidão uma população de presenças criadoras. Ele está livre.

Binelde conta-me à medida que caminha como isso lhe tem permitido ver o mundo aberto para ele com intensidade. Nietzsche disse que é preciso caminhar para pensar, Binelde diz que é preciso caminhar para encontrar a autenticidade perdida e abrir novas perspectivas. É uma libertação. A sua peregrinação é um desafio humano, uma expiação, um ascetismo e uma conquista. Faça chuva ou faça sol, ele caminha e é assim que procura todos os dias, a partir das 18 horas, um lugar discreto para armar a sua tenda; na floresta ou no jardim de um habitante benevolente. Foi assim que dormiu nos celeiros, nas ruínas e num cemitério. Foi assim que teve a oportunidade de ajudar uma senhora que acabara de atropelar com o carro um colossal javali que atravessava a estrada. Foi assim que acabou numa esquadra de polícia rindo com policiais que até lhe deram uma cela para passar a noite num lugar quente. Foi assim que se viu a ser resgatado por um padre ao ser atingido por uma violenta febre do frio e do tempo inclemente numa noite em que a dor o fez ouvir a voz da sua mãe que chamava por ele como num sonho. Foi assim que conheceu numa aldeia um jovem inglês rico que a princípio tomou por empregado e que depois lhe ofereceu uma suíte presidencial no seu castelo para passar a noite, após beber com ele e os seus amigos vários champanhas vintages e depois dele, o inglês, convidá-lo para uma viagem a Hong Kong. Trata-se, portanto, de uma peregrinação extraordinariamente humana, que chegou a amolecer os gendarmes que os aldeões haviam chamado ao ver Binelde defecar na mata e a quem ele perguntou com ternura: “E para onde vão os animais para se aliviar ?”. E hoje em dia, como não desconfiar de um homem, além do mais negro e barbudo, que chega sozinho com uma mochila grande, a pé numa aldeia? Mas Binelde está determinado a caminhar até Paris, onde planeia chegar dentro de 4 ou 5 dias. E continua a oferecer sementes de embondeiro às pessoas que encontra para recordar o seu país, Angola, onde essa velha e sábia árvore que nasceu com o mundo é importante.

A caminhada humana de Binelde, o seu exercício espiritual inspirou-me muito. Então para estender e continuar a corrente humana que ele nos oferece, decidi ir juntar-me a ele a poucos quilómetros de Paris, com outros amigos inspirados, para que juntos cheguemos com o Binelde em Paris, seu destino final. Pois a sua caminhada não é apenas a sua forma de se ligar com o mundo e com os humanos, desfazendo-se das nossas máscaras sociais e dos nossos papéis impostos. É uma forma de nos ligar com toda a humanidade, é Ubuntu.

Para quem quiser acompanhar a aventura de Binelde Hyrcan, pode fazê-lo pela sua conta do Instagram: @bineldehyrcan

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Ricardo VITA
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Written by Ricardo VITA

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