Os Bakongo, a Feitiçaria, a Discriminação (primeira parte)

Ricardo VITA
6 min readOct 30, 2020

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Há pouco tempo, os bakongo foram considerados feiticeiros. Há algum tempo, deixamos que fossem massacrados numa sexta-feira de 1993. Há muito mais tempo, foram bem alvejados durante os crimes de 27 de maio de 1977 e em 1975, quando a FNLA foi expulsa de Angola. Tudo isso aconteceu no seu país, um país legado por seus antepassados. Os eruditos sabem que os planos para exterminar um povo começam com preconceito, então dizer que os bakongo são os judeus de Angola e que já sofrem o mesmo destino não seria exagero. São também como os tutsis de Ruanda, porque os belgas tinham com eles o mesmo complexo que os portugueses tiveram com os bakongo: são povos inteligentes e organizados, que eles não conseguiram dominar. E os portugueses transmitiram este complexo de inferioridade, o ódio visceral contra os bakongo, aos Assimilados a quem deram o poder na Independência. Também transmitiram a sua definição de feitiçaria, que não tem tradução em nenhuma das línguas africanas. Mas, quando se é inteligente e culto, sabe-se que se existe feitiçaria entre os bakongo, é porque existe também no Bengo e em Luanda, certo? São terras dos bakongo, embora hoje a Angola artificial que se criou as tenha feito Assimiladas e os seus habitantes tenham orgulho de não estarem associados aos bakongo. E, de outra forma, os malanjinhos, bienos ou outros angolanos, ou mesmo todos os africanos, seriam menos feiticeiros? Bem, quem puder demonstrar isso, que apareça, com as provas que o justifiquem e venha vestido com a sua coragem, toda Angola espera-o com pés firmes!

Mas falemos dos reais motivos da discriminação dos bakongo em Angola. Porque é preciso um sussurro aos jovens para evitar o pior contra esse povo incomodador, inicialmente odiado pelos colonizadores que moldaram os espíritos que dominam o nosso país. Já não podemos fingir, a discriminação dos bakongo tem uma longa história! Assim, aos jovens angolanos, aqueles que têm pelo menos a minha idade, 40 anos, devo este testemunho, em duas partes, para que possam compreender os contornos das fendas, para que resistam, que perseverem e que sejam fiéis ao ideal de uma Angola unida, mais africana e livre de qualquer espírito colonizador que a possa matar. Esses jovens devem evitar as catástrofes anunciadas e devem enfrentar o seu destino para superar a injustiça, o nosso inimigo comum. Porque “cada geração deve, em relativa opacidade, enfrentar a sua missão: cumpri-la ou traí-la”, assim avisou o lúcido Frantz Fanon em “Os Condenados da Terra”. A geração de angolanos a que me dirijo deve saber que os seus desafios são sociológicos e históricos e que deve procurar o reforço da nossa união por todos os meios, especialmente conhecendo a nossa história, procurando a verdade, para alcançar esse objectivo. Em Angola, por ter sido uma colónia de povoamento e Portugal não nos ter enviado os seus melhores filhos, pois quase um em cada três portugueses não sabia ler nem escrever em 1960, e que nos enviou, no início do século XX, montes de ladrões ciganos, de quem queria livrar-se (ler “Presença cigana na colonização de Angola”, Couto), o sistema de classificação segregacionista de cidadãos que se criou ainda mantém o essencial da sua força. Em 1960, as bases do neocolonialismo já estavam bem estabelecidas e eram representadas pelos mestiços e Assimilados, uma falsa burguesia forjada do nada, que eram menos de 3% da população negra angolana. Entre os Assimilados, havia bakongo, notavelmente em Mbanza-a-Kongo, mas poucos mestiços porque os bakongo resistiram por muito tempo à mistura voluntária com outros povos. É uma atitude de gente que tem uma civilização forte a preservar, como os Windsors hoje.

Durante a colonização, Uíge, na altura Carmona, e as suas regiões tornaram-se o centro do cultivo do café. Os trabalhadores resistiam às condições de trabalho forçado e aos impostos a que foram submetidos, e eclodiram várias revoltas, até que todo o Norte se abraçou, desencadeando a mais assustadora resistência anticolonialista para Portugal. Milhares de angolanos refugiaram-se no Congo belga na década de 1960 e os bakongo, principalmente os do Uíge, que têm um espírito empreendedor mais desenvolvido, puderam ali mandar os seus filhos para a escola. Povo de grandes agricultores, desenvolveram negócios prósperos. E quem fala em negócios, fala em poder financeiro e quem fala em poder financeiro, fala em capacidade de mandar o seu filho para a melhor escola. Assim, antes da nossa independência, já havia filhos de angolanos no Congo entre os grandes engenheiros da Gécamines, a empresa estatal que explora as minas do país, e outros tornaram-se reitores de universidades como a Lovanium. Lá, o nível médio que alcançavam era o Diplôme d’Etat, equivalente ao Ensino Médio completo. E durante esse tempo em Angola, mantinha-se a 4ª classe, e para quem pudesse alcançá-la. Retenham este primeiro elemento, é importante. Outro elemento a levar em conta é a própria ideologia da UPA, que tencionava aniquilar o colonizador, os seus filhos e amigos; portanto os Assimilados e os mestiços, mesmo que o movimento tivesse no seu seio alguns em quem tinha confiança. Já dissemos que Angola era uma colónia de povoamento, então o problema é óbvio. Mas o ódio contra os bakongo foi habilmente ideologizado e cultivado de forma sustentável. E o que não foi dito é que dentro dos próprios bakongo, havia aqueles que a UPA, que se tornou depois FNLA, também queria matar. Tal como o meu pai, porque era Assimilado, Católico e do MPLA, ainda que vários dirigentes do movimento fossem da sua família, outros de famílias aliadas e ainda outros de amigos cujos filhos ele teve como alunos enquanto professor. E a cultura desta discriminação vai instalar-se na cabeça dos angolanos que se queria usar contra os seus irmãos do Norte; uma vez que todos os bakongo eram vistos como iguais, especificamente os de Mbanza-a-Kongo, a terra natal de Holden Roberto. Isso é o que justifica até hoje a ausência de naturais desta cidade nas mais altas esferas do poder político no nosso país. E isso ainda causa inibição em muitos deles, que vivem discretamente, à medida que chove testemunhos sobre como os portugueses os odiavam e como alguns líderes conhecidos do MPLA juraram condená-los ao ostracismo perpétuo. Vamos continuar.

Mas, depois da crucial e inegável participação dos bakongo na libertação de Angola, a estratégia portuguesa fez com que o poder fosse entregue aos amigos, como orgulhosamente dizia Rosa Coutinho, que aliás se diz ter laços familiares com Maria Eugénia Neto. No entanto, após a Independência e muito rapidamente, o Presidente Neto foi confrontado com a falta de cérebros para pensar e pôr em marcha o país que queria governar. Foi assim que Paulo Freire, o pedagogo brasileiro, recomendou-lhe em 1976 um jovem intelectual angolano, que era seu assistente em Genebra, Pedro Nsingui Barros. Este último fará nesse ano, a pedido do Presidente, o primeiro relatório sobre o estado da educação em Angola, sob a tutela de Lúcio Lara. O Presidente reconhecendo que os bakongo estavam melhor preparados intelectualmente, pediu nesse mesmo ano a António Jacinto, então ministro da Educação e Cultura, para enviar uma carta oficial a Pedro Nsingui Barros a pedir-lhe que se metesse à disposição do país. Em 1977, Ambrósio Lukoki substituiu Jacinto na Educação e lançou o Projecto de Reforma Educativa, com Pedro Nsingui Barros e Pedro Domingos Peterson, cabendo ao último a área da formação dos professores. E os três são bakongo, que posteriormente se tornaram professores universitários. O trio criou o Instituto Normal de Educação (INE), o Centro de Investigação Pedagógica e de Inspecção Escolar (CIPIE, agora INIDE) e o Instituto Superior de Ciências da Educação-ISCED de Lubango. Esse conjunto constitui a base da educação em Angola. Este é outro ponto de crispação com os Assimilados, que desejavam o monopólio da cultura, da educação e da economia. Veremos mais no próximo artigo.

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Written by Ricardo VITA

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