Os Bakongo, a Feitiçaria, a Discriminação (segunda parte)

Ricardo VITA
6 min readNov 6, 2020

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As nossas diferenças nasceram da história colonial, ou seja, da opressão. O colonizador multiplicou as divisões e forjou as diferenças para provocar e aumentar a estratificação das nossas sociedades e parar deliberadamente o seu desenvolvimento. Nada foi poupado para liquidar as nossas tradições, para trocar as nossas línguas pelas suas e, por exemplo, para colocar santomenses ou cabo-verdianos ao trono do Kongo a fim de destruir a sua essência. A analogia com judeus e tutsis é adequada. Para os primeiros, o frade Bernardo Da Gallo, um dos padres que orquestrou a morte de Kimpa-a-Vita no século XVIII, escreveu uma carta à Propaganda Fide, o antigo órgão de propagação da fé católica, na qual dizia o seu espanto ao ver que os bakongo ‘ainda’ eram ‘autorizados’ a praticar a circuncisão como os “pérfidos”, um nome negativo que também se referia aos judeus. Ler “Le royaume de Kongo du XVIe au XVIIIe siècle”, Balandier. Note que a circuncisão é uma prática ancestral que os bakongo ainda praticam. A analogia com os segundos vem do facto de que, logo no encontro com os portugueses, esses passaram a chamar os bakongo de “gregos africanos”. E os belgas chamavam os tutsis de “negros brancos” porque, como acontece com os brancos de mente limitada, qualquer sofisticação ou grandeza só pode ser branca. Mas, posteriormente, todos os tipos de nomes difamatórios foram cunhados para designar os bakongo, incluindo aqueles que nunca saíram de Angola. Antes da Independência, eram inicialmente chamados de ‘Monangambés’, depois ‘Congo-Angolanos’, depois ‘Regressados’ ​​ou ‘Retornados’ e mais recentemente ‘Zairenses’ ou ‘Langas’, porque também se ensinou a odiar o Zaíre (RDC) por ter apoiado a FNLA. O termo ‘Retornados’ foi usado em Portugal para brancos que voltaram à sua terra por causa das guerras anticoloniais, mais lá não tem a carga discriminatória que tem em Angola. O pior é que nem todos os refugiados angolanos no Congo eram bakongo, mas os restantes não sofrem com esta discriminação. Mesmo assim, os bakongo, inimigos criados de raiz pelo colonizador, depois da sua valente participação na libertação de Angola e a partir do momento em que passaram a ser o motor que fazia andar o país que se queria construir sem eles na Independência, foram mais solicitados quando o presidente Neto foi em 1978 pedir a Mobutu o regresso de todos os angolanos ao seu país. Ao chegarem, passaram a ocupar cargos estratégicos em ministérios, empresas, escolas, universidades, na saúde, nos sindicatos e nas igrejas. Assim, os angolanos, e portanto também os Assimilados, passaram a ter professores ou chefes com sotaques que eles desprezavam. E não era esse o plano dos Assimilados, já que estávamos aí a caminhar para o culminar do mundo que Agostinho Neto havia prometido ao “Mussunda Amigo” no poema epónimo. Foi, portanto, mais uma frustração para os ideólogos do ódio.

Porque os bakongo têm uma forma diferente de ser angolanos; no seu comportamento, no modo de vestir, de comer e nas suas tradições. Têm um apego romântico, sagrado e até místico à terra; que é passada de pai para o filho (o sobrinho materno), de avô para netos, portanto de geração em geração e não a traem, mesmo que isso signifique morrer por ela (Vo ke mu mwana ko, mu ntekulu. Vo ke mu ntekulu ko, mu mwana-a-nkasi). E outro provérbio deles diz “Ntoto wu-fwa ye lengo”, que significa “ver a (nossa) terra perecer é o pior sofrimento”. Os que partem transmitem as raízes aos descendentes. Um filho mukongo nunca dirá que vem de Trás-os-Montes ou de Amesterdão para ficar bonito. Dirá que vem de Maquela do Zombo, Buco-Zau ou Madimba, para estar em harmonia com a sua cosmogonia, embora seja da terceira geração nascida em Nova Iorque. No entanto, por causa da discriminação que enfrentam no seu próprio país, certos bakongo disfarçam-se para sobreviver. Como os judeus na Inquisição, evitam usar nomes de raiz, deixam de ensinar a língua aos filhos e até procuram falar português melhor do que os Calcinhas. Pois, é o único barómetro de angolanidade imposto no país. Foi assim que Mbiyavanga se tornou Biavanga, Mvemba Vemba, Nkanga Canga, Nganga Ganga, Nkosi Coxe ou Costa, para passar entre as malhas da rede. É assim que Nascimento Da Consternação ficou mais bonito do que Matondo KwaNzambi! Essa mudança foi mais notável após a morte do presidente Neto e após os Assimilados terem conseguido afastar Ambrósio Lukoki, que foi considerado para o suceder. Para eles e como tinha recomendado o amo português, ele tinha o defeito de ser mukongo e, sobretudo, o soar dos seus érres não era o que os ouvidos colonizados aprenderam a amar. Note que a letra R não existe em kikongo. Mas tudo isso foi feito ao mesmo tempo em que se explorava o seu cérebro, escondidos atrás de quatro paredes. Dos Santos, que se diz ser de origem santomense e, portanto, fruto da colonização de povoamento, foi assim a melhor escolha, sem dúvida, para proteger a minoria que se tornou a maioria sociológica com a qual governou Angola. O gangue de mercenários com quem saqueou o nosso país. Ler“Fenomenologia da cultura portuguesa”, de Pinharanda Gomes, para perceber melhor estas mentes. E da mesma forma que aos judeus foram atribuídos “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, escritos pelo falsário anti-semita Matveï Golovinski, antes do “Mein Kampf” de Hitler, para os acusar de terem um programa de dominação mundial, que justificou o seu extermínio posteriormente pelos nazis, Mac Mahon, um irresponsável médico angolano, por sua vez desenvolveu para o MPLA a teoria sobre o canibalismo dos bakongo. Lopo do Nascimento desmistificou isso recentemente num vídeo que ainda está disponível no YouTube. Mas persiste em algumas cabeças o espectro da dominação de Angola pelos bakongo, um receio que também se tem em relação aos nossos compatriotas Ovimbundu por serem a maioria. Só que os bakongo não têm nenhum plano de dominação, o seu único desejo é participar plenamente no florescimento do seu país. É por esta razão que continuam a evoluir neste contexto discriminatório. São a espinha dorsal do país para o benefício dos trabalhadores da undécima hora, são humilhados e escondidos. Mas estão aí e vão ficar, Angola também é deles. Aqueles que foram trazidos para a linha de frente vieram por competência e não por simpatia.

Estas são as principais razões da nossa relação ambígua com os compatriotas do Norte. E em países respeitáveis, o Estado de Direito está na vanguarda do combate a qualquer discriminação sofrida por um membro ou grupo da sua comunidade nacional. Mas nunca li uma única linha do nosso Estado denunciando os diversos crimes e as discriminações contra toda uma parte de Angola. E quem cala consente. Então cabe a nós, jovens angolanos, construirmos juntos uma Angola mais justa para todos. Sabemos que estamos condenados a viver juntos. Entremos na história para completar o projecto improvável dos patriotas que se levantaram para lutar contra a tirania estrangeira e erguer a bandeira da esperança por uma sociedade melhor. Esses patriotas legaram-nos a construção de uma Nação, uma obra que deve ser constantemente aprimorada. E recuso-me a acreditar, apesar das contradições, que o seu ideal não era a igualdade entre todos os angolanos, podem ter-se perdido. Estejamos, pois, dispostos a fazer a nossa parte, a assumir a nossa missão geracional: criar uma Angola maior; através das lutas, nas ruas e nos tribunais e através da desobediência civil. Temos histórias diferentes, mas esperanças comuns e queremos caminhar em direcção a um futuro melhor. Devemos isso aos nossos antepassados. Recusemos a Angola que exclui, criemos outra Angola que inclua também aqueles que excluíram. Também são angolanos de jure. Portanto, não pretendamos desassimilá-los, mas conviver com eles, como compatriotas, não podemos extirpar com uma operação sangrenta o colonizado que está em cada um deles. Se eles fabricaram monstros para justificar e perenizar o seu lugar, nós criaremos seres humanos para justificar a nossa humanidade. E vamos criar outros humanos, melhores. Essa será a única legitimidade que nos permitirá dizer que os nossos mais velhos falharam na sua missão.

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Ricardo VITA
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Written by Ricardo VITA

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