Waldemar Bastos, fino até ao fim
É com a bela canção de Waldemar Bastos intitulada “Marimbondo” que em Angola as gerações que se sucederam à dos millennials; a Geração X e a Geração Z, em particular, saberão que esse nome se referia a uma espécie de vespa do nosso país antes de se transformar extravagantemente em um neologismo pitoresco que agora define também, e sobretudo, aqueles que saquearam o nosso país. Através da música, saberão que esta vespa já foi bela, que até teve majestade no seu zumbido, no seu vôo e que não foi sempre extremamente odiada e nem a sua evocação sempre profundamente dolorosa. Vão até ouvir algo bonito através das melodias encantadoras da sua música que anunciam o génio por trás da criação. Portanto, sentirão delas o som sublime que toca as nossas almas, que nos liga aos nossos ancestrais e a todo o universo; em suma, ouvirão uma música capaz de seduzir os anjos que cercam os deuses que os humanos se deram. Saberão também, mais tarde, que a voz melancólica e esperançosamente penetrante que canta tocou, na Terra, sábios e sacerdotes, mas também opressores, ditadores e traidores. Vão entender que foi uma voz que rompeu fronteiras, que recusou a submissão o que quer que fosse e o universalismo no fraternalismo. Vão ouvir aquela voz que dizia à música portuguesa: “Canto-te com a minha alma, com as sonoridades do meu povo e saberás quem eu sou!”. Saberão que ela foi até lembrar a Chico Buarque e a todos os Brasileiros de onde vem a alma que torna a sua música tão bela e saberão como ela, esta voz, soube comungar com toda a música das vozes negras que a tempestade da odisseia atingiu violentamente e que foram generosamente legadas a este mundo ingrato. São elas, essas vozes, que geraram e moldaram o blues, o jazz, a soul, o samba, o rock. São frutos dessa música negra que deu origem a toda a música do século XX, a poesia moderna. Essa voz plebiscitada pelo New York Times, a de Waldemar Bastos, tinha todas essas gamas e tessituras no seu repertório, expressava-as na maior e mais sofisticada arte e da maneira que teria sido aprovada pelas belezas que todos os monarcas da Antiguidade temiam. Angola tem uma voz que foi aplaudida em 1999 no World Music Awards, um dos pódios mundiais de reconhecimento supremo.
Waldemar Bastos contou-nos ao longo da sua carreira, e a sua obra de 7 brilhantes discos nos lembrará para sempre, que o universalismo imposto pelos outros não faz sentido para nós. É o universalismo que combina os particularismos de todos os povos e todas as culturas que faz sentido. Ele foi a voz da fraternidade, foi a encarnação da diversidade. Para ele, não havia povo menor ou subcultura; todas as culturas eram iguais e cada uma tinha o seu charme e a sua beleza para oferecer ao mundo. Esse era o mundo de Waldemar Bastos, esse gigante da música mundial a quem a Velha Chica, a velha avó que se calava sobre os motivos dos infortúnios que a haviam marcado até nas feições do rosto e que se recusava a responder às questões patrióticas do pequeno Waldemar, que ainda estava na escola, para o proteger certamente, proibia, em vão, de falar de política. E como não falaria ele de política se tinha nobres valores e visto o mundo em que o Bom Deus o fez nascer? Certamente era o medo de uma senhora idosa, uma guerreira que fora dobrada pelo chicote colonial e que vira a revolta germinar em todo o ser do neto Waldemar, que estava determinado a lutar por ela e vingar a sua pátria, que levou a Velha Chica a dar-lhe este conselho prudente, o conselho da experiência que conheceu o ferro da opressão. Mas já era tarde, Waldemar estava erecto e caminhando; foi lutar contra a PIDE que o iria prender aos 17 anos e irá lutar contra a ditadura que se seguiu à independência que a Velha Chica esperou pacientemente no sofrimento revoltante antes de finalmente aceitar a própria morte. E na década de 1980, a ditadura afastou Waldemar do seu querido país, a quem decidira de enviar, a partir daí, cartas de amor durante toda a vida, as quais escreveria com paciência e exigência aturada. Vai enviar-lhe uma primeira carta, de 8 capítulos, em 1983, do Brasil, intitulada “Estamos Juntos”. Mandar-lhe-á uma segunda, em 1989, também de 8 capítulos, “Angola Minha Namorada”, e ainda outra, de 9 capítulos desta vez, “Pitanga Madura” em 1992, ano em que tinha acreditado com regozijo que a guerra no seu país havia realmente acabado. E na carta de 1997, “Preta Luz”, de Nova Iorque, também de 9 capítulos, que será lida diante de toda a Terra e que o fará brilhar no mundo inteiro, narra a sua desilusão com a retomada da guerra em Angola. Em 2004, finalmente consolidado o fim da guerra fratricida, mandou outra carta de 11 capítulos, intitulada “Renascence”, na qual abria uma nova página de esperança e do seu amor incondicional. Vai confirmar esse amor em 2008, na carta que mandou em nome de África, de um só capítulo e em inglês, “Love Is Blindness”, participando no projecto de compilação “In The Name Of Love Africa Celebrates U2”. Mas em 2012, provavelmente sem saber, enviará à amada pátria a sua última carta intitulada “Classics of my soul ”. E a partir de 2017, um novo vento começou a soprar no seu país e a oportunidade de reabilitar o menino-prodígio que se tornou grande senhor era boa demais para ser perdida. O Prémio Nacional de Cultura e Artes que lhe foi atribuído pelo governo do Presidente João Lourenço em 2018, que foi para Waldemar Bastos a mais íntima consagração, será na história de Angola um dos pontos positivos do bom legado deste presidente. E esperamos que nunca mais haja perseguições a nenhum filho de Angola, de uma forma ou de outra, isso é obra de cobardes e de mundos do passado, é o debate que tem vozes contraditórias que faz avançar!
Waldemar Bastos e eu nascemos na mesma cidade, Mbanza-a-Kongo, mas o seu talento vai além deste vínculo que nos une. Gostaria de poder estar à altura do seu senso de integridade, de ter a sua humildade, o seu carácter sacrificial, a sua abertura e grandeza de espírito. Recentemente, comentando um dos meus textos sobre identidade negra, publicado em Portugal e Angola, escreveu para mim o seguinte: “Óptimo, estão a começar a entender e a perceber que não jogamos só futebol e kizombadas. São estas e outras lições de conhecimento que nos posicionam no lugar respeitável de igual para igual como seres Humanos. Abraço e sempre clarividência!”. Aqui vemos o mínimo que esse Grande Senhor que cantava nas nossas línguas esperava dos humanos e a sua dimensão humana. Também era chamado de “Fino”, pois a sua beleza física e as suas maneiras nobres são pontos com os quais parecemos concordar. Mas em “fino” vejo também delicadeza, mansidão, excelência. “Basolua Ke Baluakako”, diz o refrão da sua única música em Kikongo. E sim, canta ele, “os Ungidos não chegaram”. Nesta canção, cujo título aliás teria mais sentido em Kikongo se o tivéssemos escrito “Basolua Ke Baluakako” e não como está, “Basolua Balukaco”, Waldemar Bastos oferece-nos a profundidade dos gospels que caracterizam os Bakongo, que influenciaram os Negro Spirituals. Ainda os ouvimos com os Kimbanguistas e Tokoístas em particular. E neste momento de grande tristeza, não posso deixar de dirigir as minhas condolências à família enlutada. Estou a pensar em particular no Kota Vicente, o seu irmão, que ainda vive em Mbanza-a-Kongo onde a minha memória de infância ainda o vê a jogar com a camisola do Estrela do Kongo. O pai deles viveu na nossa cidade durante muito tempo, pelo menos até nos anos 1970, a minha família e todos os habitantes da cidade o conheciam bem. Era enfermeiro, mas ficou mais conhecido pelo talho que tinha, em concorrência com meu tio avô paterno, e até era acusado de vender carne de cão, uma acusação que deve ser motivada pela inveja. Nas suas últimas mensagens, em uma, o Kota Waldemar escreveu para mim o seguinte: “Caro Ricardo, tenho estado a viajar sem disponibilidade, calma, tempo”, e em outra: “Em breve falaremos”. Mas agora tudo indica, meu Kota, que só poderemos ter essa nossa conversa na aldeia dos nossos antepassados. Ndapandula Suku Yangue por nos ter dado Waldemar Bastos.